quarta-feira, 16 de julho de 2014

Mais (do mesmo) sobre os 7 a 1

Este não é um blog de jornalista, que traz informações dos bastidores do futebol e por eles transitam. Este é um blog de torcedores. Ultimamente de um torcedor. Também não tem muitos leitores, os poucos não comentam, mas pelo que tenho lido nos comentários por aí, talvez seja melhor assim. E, justamente por isso tudo, não tenho a pretensão de apontar saídas ou caminhos para o futebol brasileiro. Mas tão somente externar minha opinião de torcedor-leigo, amante do futebol arte. O fim da Copa, por si só, já me gerou uma depressão. Não quero com esse texto acentuá-la, em mim, tão pouco em você, mísero leitor.
Todos hão de concordar que a Copa gerou certas expectativas e as superou, em quase todos os casos. Minha grande expectativa era relacionada à possibilidade de encerrar, em nosso imaginário, a derrota de 50. Convivendo com inúmeros torcedores mais ou menos jovens, percebi que este fato era irrelevante a eles. Ao menos no nível da consciência. Mas para mim esta era a grande questão. Os 7 a 1 sofridos pelo Brasil, de fato, encerraram a questão e a superaram (!!!). De fato, Marx tinha razão e rimos de nós mesmos. Na busca por revisitar a tragédia que fora a derrota do passado, construímos uma presente piada, alimentada pelos infinitos memes na internet e comentários jocosos. É sobre os efeitos desse jogo que quero falar.

CBF
Nos meus posts falo menos sobre futebol e mais sobre o imaginário (este é o termo que eu encontrei, desprovido aqui de qualquer sentido mais profundo) que fazemos e temos sobre o futebol. Penso que torcemos pela Seleção Brasileira, quando na verdade, deveríamos reconhecer que se trata do time da CBF. Não temos música para esta seleção, porque nunca precisamos empurrá-la. Os anos de ouro do futebol brasileiro foram marcados por um jogo que se resolvia na qualidade dos nossos jogadores. Independente se a torcida empurrava ou vaiava. E mesmo nesse tempo, nosso espírito sempre foi mais o de vaiar que o de aplaudir. Desde que se criou essa imagem de futebol-arte (já na Copa de 50, segundo o brilhante relato de Paulo Perdigão em Anatomia de uma derrota), esperamos uma seleção show, que jogue por música. Não lembro de ter visto essa imagem em campo, nem em 94 e 2002 quando fomos campeões. Apenas esporadicamente, em um ou outro jogo.
Esta CBF vive de vender ao mundo este imaginário. Se preocupa tanto em vender este imaginário, que acaba deixando o que importa de lado: o futebol real, a construção e gestão deste. No meio da Copa, em meio ao meu desejo de vitória, inebriado pelos acontecimentos televisivos, vinha lampejos de algo estava errado: o José Maria Marín ergueria o troféu? O Marín? Afastava esse pensamento, convencido de que o mais importante era vencer. Vencer? Esse engodo, de que a CBF representa o Brasil, já estava na hora de acabar. A CBF se representa! Roubou o futebol brasileiro pra ela, o vende pelo mundo sem critérios, em negócios e jogos escusos, usa a nossa paixão (daqueles que a nutrem, independente do período de Copa), e não quer nos dar satisfações? Rá!
Em suma, não é possível viver mais de um imaginário. A seleção do futebol-arte nasceu em 50, cresceu e se reproduziu até 80, conseguiu se manter em pé, com algum vigor até 2002, agonizando desde então até a tarde de 8 de Julho de 2014, quando foi alvejada, em cerimônia sacrificial em BH, com sete bolaços nas redes.

Marketing
Associado à péssima gestão do futebol brasileiro, temos jogadores mais preocupados com a imagem, que com o futebol. Tudo bem, estamos em 2014, a imagem é, muitas vezes, tudo o que resta a economia de mercado, no entanto, que porra é essa de Luciano Huck parar treino para gravar porra de programa? Ah, mano (leitor, não o Menezes), numa boa, isso não é coisa digna. Se vocês são amigos do Luciano Huck, esse playboy que nunca pôs o pé na bola, então não dá pra esperar muita coisa mesmo. Muito sorriso, muita piada, muita raiva na hora do hino e pouca bola.
O compromisso dessa atual geração é em fazer publicidade. Vender produto dos patrocinadores e agradar a gran finada, que pode pagar 200 contos numa camiseta e 800 num ingresso. Menos marketing e mais treino, meu filho. Menos selfie e mais coletividade. Mais Jardim Irene e menos Granja Comary. Mais Várzea e menos Escolinha do Marcelinho Carioca. Por um Marketing às avessas, como fizeram argentinos e alemães, que sabem ganhar dinheiro e defender causas interessantes, nas quais (suponho que) acreditam.
O papo de "dar alegria pro povo" do David Luiz é conversa pra boi dormir. Quem precisava de alegria eram vocês, se fossem do povo, ou se estivessem perto do povão, a teriam. Mas vivem num mundo arrogante, de cabelinhos engomados e roupas de grife, desde os 15 anos, aí é osso, né negada?


Tática

A decisão da Copa metaforizou o confronto entre duas escolas. Chico Buarque, menino bom da peste, escreveu uma crônica em 98 intitulada O moleque e a bola, em que basicamente defende a genial ideia, de que enquanto os europeus dominam o campo de jogo, os brasileiros são os donos da bola. O que é no mínimo genial e pode ser expandido para os latino-americanos, incluso aqui nuestros hermanos. Sempre vencemos pela individualidade, assim como também por ela perdemos. Enquanto os europeus, num futebol de muita aplicação coletiva, se caracterizam pela ocupação dos espaços. Isso pode ser visto no modo como, ausentes de campos de futebol decentes, nossos garotos fazem malabarismos em vielas, ônibus, igrejas, bastando para eles a bola.
No confronto entre colonizador e colonizado, o dono do campo, o primeiro, é o sujeito que racionaliza o tempo e o espaço e desenvolve o capitalismo. Nesta Copa, embora atualizado, ocorreu este confronto. Os alemães donos do espaço e os argentinos, com um único dono da bola, Messi. Ainda que qualquer coisa possa acontecer numa partida de futebol desse nível, os alemães saíram vencedores quando da entrada de um jovem com características semelhantes as nossas. É como se o aviso estivesse dado: se aliarmos tática e individualidade, dificilmente um time sairá derrotado. Em menor escala, os hermanos tiveram muita aplicação tática, mas com um time mais limitado tecnicamente.
Falar que o Parreira e o Felipão são obsoletos é mais uma opinião movida pela raiva da infantil derrota que uma verdade absoluta. Alguma coisa de tática e de futebol moderno eles devem saber. E o futebol, é tão misterioso, que pode ser que tenham feito muita coisa no treino e que o time simplesmente não encaixou, por um ou outro detalhe. Mas é fato que podemos definir tática como a ocupação do espaço, num tempo certo. É jogar sem a bola, manter certa coesão. Movimentar-se de tal modo, que obrigue o adversário ao erro e neste momento, conseguir o gol. O Brasil não fez nada disso. Em nenhum dos jogos. Também não usou a tática em que "o gol é só um detalhe" do professor Parreira, de manter a posse de bola a qualquer custo. Nem mesmo a do contra-ataque. Em todos os jogos, em inúmeras situações, o Brasil parecia o Tumiaru F.C. antigo time de várzea de minha rua, em Santo André, hoje falido, nunca campeão de coisa alguma.

Emoções e sentimentos
Quem sou eu para avaliar as emoções de alguém, se as tenho, dentro de mim, turbulentas, obscuras e quase sempre explosivas. Não sou ninguém. Pensei que se eu mesmo estivesse em campo, não daria conta daquela atmosfera insana. Não quero abordar esse tema, pois acho covarde induzir alguém a pensar que os jogadores, seres humanos, foram covardes. Não acredito nisso. Acredito apenas que os aspectos táticos e técnicos falharam, como falharam, as emoções se descontrolavam. Algo que acontece com todo e qualquer profissional. Todo e qualquer ser humano. O que significa que em tempos de extrema exposição e de uma vida de aparências é fundamental a todos o autoconhecimento e a autorreflexão. 

Caminhos
O que aconteceu a Seleção da CBF é apenas um sintoma maior de problemas mais sérios e profundos do futebol brasileiro. Farei coro a todos que pedem mudanças profundas na administração do futebol, mas quero deixar claro que não concordo com qualquer mudança. Hoje, o Lance! publicou interessante proposta a qual divulgo e com a qual concordo em grande parte, trata-se de um período de mudanças, também concordo com as propostas do Bom Senso F.C. e com o brilhante texto de Flávio Gomes. Apenas acrescento uma reflexão:

- O principal objetivo do jogo é o torcedor. É nele e para ele que tudo deve ser pensado. Ingressos mais baratos já. Acessibilidade garantida às partidas. Melhores jogos. Trato mais humano. Convençam-se, senhores do futebol, a torcida da Copa não sairá de casa para assistir aos jogos, se sair quererá assisti-los sentados, sentados não cantarão, sem cantar o jogo em campo perderá em elementos que transcendem a vencer ou perder. O jogo perderá em elementos ritualísticos e lúdicos que o trouxeram até aqui. 

Não somos o país do futebol

O futebol pode ser um dos lugares em que expressamos nossa nacionalidade (em sentido amplo), no entanto, o futebol não é o mesmo que a identidade nacional, se é que ela existe. No Brasil, o futebol move paixões e inspira multidões, mas não a totalidade do povo. Não façamos dele algo mais importante do que é. Termino este texto com uma frase de uma amiga, que ressoou em minha cabeça durante alguns dias: "No futebol, na política ou na vida: mais tática e menos deslumbramento" (Ana Flávia Marx). 

domingo, 6 de julho de 2014

Seu Zé e suas histórias de 2014

Era a Copa de 2054. Senhor José, também chamado Seu Zé pelos vizinhos, Vô Zé pelos netos, contava suas histórias:

- Copa boa mesmo só vi uma: 2014. Antes dela só marcação. Depois dela, o tal marketing tomou conta e nesse tal de "futebol moderno", só sobrou brucutu. Teve muita goleada e muito jogo bom. A Costa Rica ganhou da Itália, do Uruguai e só não ganhou da Holanda, porque faltou perna. Sei que parece óbvio pra vocês a Costa Rica e a Colômbia serem grandes seleções, mas naqueles tempos...

O futebol havia mudado, os clubes tinham nome de empresas: Corinthians Emirates, Gomes da Costa Santos, Habibs São Paulo. Alguns, outrora grandes, nem existiam mais. O Brasil estava na fila, uma longa e dolorida fila e o amor ao futebol era coisa dos mais velhos.  Além disso, depois do grande bug que ocorrera em 2030, todas as imagens do passado se resumiam nos restos de memória coletiva daqueles que sobreviveram. Seu Zé era um desses. E gostava de falar de um tal de Neymar, que só conheciam pelas palavras do avô e de outros daquela geração. 

- Antes da Copa, a maioria não a queria. Mas éramos o país do futebol. Conforme a Copa passou dos primeiros jogos, se transformou numa catarse coletiva. Quando acabou a primeira fase o Brasil enfrentou uma poderosa seleção chilena. Empatou em 1 a 1 e venceu nos pênaltis. Todos questionaram a pressão sofrida por aqueles garotos. Falavam que o time pipocaria. Expressão da época para aqueles que amarelavam, que sentiam o peso da camisa, ah sei lá como explicar isso pra vocês... Da euforia de antes da Copa, em que seríamos os campeões, tomou conta do país um profundo pessimismo. Nossa única esperança de não reviver o fracasso de 50 era Neymar. Aliás, ele era o único craque. Um craque como os do século XX e o último que vi em campo.  Falavam até numa tal Neymardependência. 

E seguia falando dos acontecimentos daqueles dias, vivos na sua retina, vividos com a intensidade da juventude. Embora Zé, naqueles dias, tenha visto tudo pela tv. 

- Nas quartas de final, o jogo foi contra a Colômbia, hoje temida, mas naqueles tempos era apenas o nascimento de sua geração de ouro. O futebol mudou muito. 

As lágrimas encheram os olhos de seu Zé, velhinho simpático e bem humorado.  

- Nesse jogo, o Brasil venceu. Mas depois de uma falta, Neymar saiu machucado. Fraturaram uma vértebra. O Brasil nunca sofreu tanto por uma vitória. Para muitos, a Copa havia terminado ali. Sem Neymar, não seria possível o hexa. O time dependia do seu grande e solitário gênio. E tinham razão, o Brasil dependia de Neymar. 

Naquele momento, Vô Zé começou a chorar, porque se lembrou do sentimento dolorido que teve naqueles dias. Não era o medo de perder o título. Essas coisas se resolvem. Vô Zé se lembrava que o menino de 22 anos assumira até se machucar a responsabilidade inteira para si, como os grandes costumam fazer. Mas naquela tarde de 4 de Julho, pensou o que pensava Neymar, a dor pela fratura, os sonhos se esvaindo. Vô Zé enxugou as lágrimas, que se confundiam com os sintomas da catarata adquirida com a idade. Os netos e os jovens, aguardavam o fim da história. 

- Era como se Neymar tivesse morrido. Uma morte em vida. Era Aquiles e seu ponto fraco. Era, para muitos, uma tragédia grega. Um herói morto no campo de batalha. Era o fim.

O vô lembrava que tragédia grega nunca foi o forte do brasileiro. Após tantos anos, nem tinha mais certeza se o que contava havia ou não acontecido. Poderia ser um sonho. Poderia ser um desejo, de recontar o passado e desfazer o mal-feito do destino. Seu Zé, que nunca viu na tragédia grega um espelho da história de seu povo e nunca foi adepto de historiadores europeus, sempre em busca de fatos incertos e verdades provisórias, sentiu-se livre para narrar a sua versão das finais:

- Na semifinal criou-se um clima gigantesco. Até os mascarados anarquistas resolveram torcer pela seleção. Fizeram um manifesto deixando claro que era pelo futebol, apenas. Não pelo Brasil, nem pelo imaginário nacional. A oposição pensou em continuar torcendo contra, mas se o fez, foi no claustro de suas mansões; a situação bombardeou-nos com propaganda ufanista. Os comunistas viam a oportunidade de criação de um herói coletivo: em substituição a Neymar, o povo ocupando a praça. Em suma, todos que puderam foram a Belo Horizonte. Invadiram a praia dos mineiros. E o Brasil venceu. Fred, até então vaiado copiosamente, fez dois gols e deu o passe para o terceiro de Henrique.

Eufórico com a lembrança, quase devaneando, seu Zé finalizou:

- Nada contra os argentinos. Os admiro. Mas naquela final, peguei meu carro e fui pro Rio de Janeiro, livros de Borges entre um café e outro na estrada, Piazola no MP3 e vinho, muito vinho de Mendoza. Parei o carro na linha vermelha, porque as estradas estavam inteiramente congestionadas. Foi o maior congestionamento da história mundial. Eram 8 da manhã e caminhei, junto com uma multidão, até os arredores do Maracanã. De fato, o povo substituiu Neymar. Não se sabe até hoje quem fez aqueles gols, da virada histórica da seleção. Não se sabe se foi o Fred, o Thiago Silva ou o Felipão, até hoje dizem que cada torcedor fez o gol. Havia cerca de 50 milhões de jogadores nas arquibancadas. O maior público da história do Maracanã. Que tragédia grega que nada, a contusão do Neymar nos deu um tema de novela em ritmo de realismo fantástico. O final foi feliz.


Vô Zé não sabia bem se o que contava era um conto ou uma novela das 10. Produto de exportação nacional há pelo menos 80 anos. Sabia que podia ser poesia. Pouco importava. Recontar aquela história, com aquelas palavras era um jeito de guardar só para si, o que de fato aconteceu. 

quinta-feira, 19 de junho de 2014

A Copa de 1950 não acabou


Os impactos da Copa de 50 foram brutalmente sentidos ao longo destes 64 anos que nos separam dela. Não apenas no âmbito do futebol, mas em todos os aspectos da vida nacional. Em termos imaginários, nas palavras do antropólogo Roberto da Matta, a nossa grande tragédia coletiva no século XX. Me foi devolvido nessa semana, um livro que comprei há três anos, mas não lera. Anatomia de uma derrota, do historiador Paulo Perdigão. Decidi então, aproveitar o ensejo e passar as vistas, finalmente pelas linhas iniciais. O livro me agradou. Começa colocando questões para além do futebol. Cita filosofia. Um quê de subjetividade. Tudo me agrada. Decidi avançar na leitura, e fiquei surpreso. Meu olhar para o que ocorre no presente está modificado.
Nestas linhas quero falar sobre as coincidências entre 1950 e 2014.

A imagem que fazemos de nós mesmos

Assim como em 1950, fizemos uma Copa para coroar a ideia de que somos o país do futuro. Embora o ciclo econômico virtuoso de 50 tenha ocorrido depois da Copa e atualmente antes, em ambos os casos a realização da Copa tem a ver com a imagem de país do futuro, que desde Caminha ("em se plantando tudo dá"), passando pelos românticos e sobrevivendo às críticas dos modernistas, constitui nosso imaginário. A Copa seria, nos dois casos, a possibilidade de mostrar ao mundo nossas virtudes, ressaltando pra nossa autoestima combalida que somos mais do que dizemos pra nós mesmos cotidianamente. 

Grandes obras
Maracanã, 1950

A arquitetura é um dos elementos nos quais o imaginário de uma sociedade se materializa. Não à toa, o Maracanã, estádio colossal, e descrito como maravilhoso pelos estrangeiros presentes no Mundial de 50, fora construído com a ideia de materializar esse imagem de suntuosidade e de potência por se realizar. Agora reformado, junto com mais 11 estádios cumprem este papel. Em 1950, o Maracanã viveu momentos apoteóticos, como as duas goleadas brasileiras sobre Suécia e Espanha, 7 a 1 e 6 a 1 respectivamente, mas foi entregue ainda em obras, na estréia torcedores e andaimes dividiam espaço. Foi também o lugar da maior derrota coletiva, que criou a noção Rodrigueana de Complexo de Vira-Latas. Preparado para ser nosso Pantheon, tornou-se nosso Gólgota. 
Maracanã, 2014

Invasões

Em 1950, na semifinal contra a Espanha, torcedores invadiram o estádio carioca para assistir o jogo, ferindo mais de 200 pessoas e matando 1. Os motivos: fim dos ingressos e preços abusivos de cambistas. Os chilenos fizeram o mesmo ontem, no mesmo estádio e pelo mesmo motivo. Sem matar ninguém. No domingo, argentinos já haviam feito o mesmo.

O jogo

Assim como em 50, o Brasil venceu o primeiro jogo (contra o México!!!) por 4 a 0, criando muita expectativa na torcida. No segundo, um empate com a Suíça, por 2 a 2 em São Paulo, jogo do qual a seleção saiu vaiada efusivamente (como não poderia deixar de ser, sendo o jogo onde foi). Depois a seleção embalou, sofrendo a derrota no último jogo do quadrangular final e perdendo o titulo para os uruguaios.

Compulsão à repetição

Outras coincidências devem existir. Podem ser coincidências, acaso ou sabe-se lá mais o quê, num país predestinado a um olhar mítico e místico de si próprio. Para bem e para mal. Nunca fomos bons em coisas de bom senso. Só sabemos amar ou odiar. Seja lá o que for. 
Tudo isso me lembrou a teoria freudiana ilustrada em A interpretação dos Sonhos de 1901. Reproduzo e simplifico aqui, o que entendi dela. Nesta tese, Freud defende o suposto de que o aparelho mental deseja evitar o sofrimento, fazendo o sujeito agir para realizar algum prazer. Imagine uma estrada em que de um lado está o desprazer, onde costumamos ficar. De outro há o lugar do prazer. Nossos pensamentos querem deslocar-se de um lado a outro dessa estrada: do primeiro ao segundo polo. Como o sofrimento é inevitável, criamos comportamentos repetitivos que surgem sempre que o sofrimento nos assola. Denominou esse movimento de Compulsão à repetição. Esse comportamento é um sofisticado mecanismo de defesa de nosso inconsciente para não tornar a existência insuportável. 
Anos depois, Freud reconsiderou a hipótese. Nosso aparelho mental não apenas recorre à repetição para conseguir o prazer, mas para evitar que o desprazer comece, mesmo que imaginariamente. Como se tentasse voltar a um lugar anterior ao início daquela sensação que nos causa desprazer.
 Gighia chuta bola de nosso calvário

Transpondo a tese de Freud para uma análise psicanalítica da nação, em termos quem sabe Junguianos, nosso inconsciente coletivo deseja evitar o sofrimento de 1950 e todas as suas consequências. Sobretudo evitar comprovar que será impossível nos realizarmos enquanto país do futuro, novamente. Trata-se de um eterno retorno. Ou o que os espiritualistas chamariam de lei das afinidades.
Espero estar errado. Marx disse que a história se repete, primeiro acontece como tragédia, depois como farsa. Se ele tiver razão, daremos risada da comédia de 2014 e seremos capazes de, quem sabe, rindo de nossas desgraças traçarmos novos futuros. Mas se a Psicanálise tiver algo a ver com isso, temo que a nossa tragédia seja repetida, ampliando também a nossa neurose: até quando buscaremos nos tornar o país do futuro?

quarta-feira, 11 de junho de 2014

A Seleção facebook

Amigo, hoje o texto será mais leve na forma, mas mais arisco no conteúdo. Já disse que torcerei pela seleção. Acima de qualquer coisa, está meu amor pelo jogo, pelo futebol, pelo que ocorre nas quatro linhas. Mas não posso aceitar tudo, que aí fica sem graça demais. 
Valesca popozuda diria que é recalque. Vá lá, pode ser, porque não? Quem não tem os seus que tire ou atire a primeira pedra. Mas não dá pra engolir essa simpatia marqueteira dos jogadores da seleção. É sorridente demais, é alegre demais, parece foto de perfil de facebook, todo mundo fodido e todo mundo sorrindo. Há de se ter um pouco de mau humor nisso tudo, uma pitada de raiva, um pouco de indignação. 
Esse bom humor demais não me agrada. Se perder ele cai por terra rapidinho e é capaz dessa Copa nem acabar. Como diria um amigo meu: Vai pensando que tá mamão, vai!. 
Nos tempos antigos, não tinha essa de marketing, assessor de imprensa e os caraio. Era ali, no frente a frente. Sem proteção e sem falsas imagens. É muita exposição e muito mais do mesmo. São sempre os mesmos jogadores, falando as mesmas coisas, com as mesmas perguntas. 
Tá certo, um Romário as vezes tumultuava o ambiente, um Edmundo era um problema, um Viola dava trabalho dentro e fora de campo. Mas agora todo mundo quer ser Ronaldo Fenômeno. É a Luciano Huckização do futebol. Todo mundo engomado e com cara de bom moço. 
O problema, meninos, meninas e amigos leitores, é que essa imagenzinha não se sustenta ao primeiro tropeço. Vejam só quem é Ronaldo Fenômeno. Veja quem é Luciano Huck. Veja o playboy do Aécio Neves. Todos na aparência bons moços, mas por trás, uma lista de promiscuidades, que só não as conta pra não perder linhas e moedas. 
É preciso mais humanidade. É preciso um pouco de loucura nisso tudo. Não há time campeão sem um, pelo menos um porra loca. Em 58,62 Garrincha, nosso jogador Macunaíma e Nilton Santos. Em 1970, Pelé, com sua cotovelada na semifinal. Em 94 Romário, que quase nem foi pra Copa porque o filhote da ditadura do Parreira não gostava de sua indisciplina. Em 2002, Ronaldinho Gaúcho. 
Esses dias o Neymar arrumou uma treta em campo e os jornalistas já começaram a dizer que ele perderia a cabeça. Deixa perder. É preciso uma pitada de porra louquice nisso tudo. 
Pela Macunaimização do futebol nacional: menos facebook e mais vida, por favor!

terça-feira, 10 de junho de 2014

Brasil X Brasis

Sexta-feira, 06 de Junho de 2014, levantei cedo, arrumei minhas coisas e fui até São Paulo para assistir o amistoso entre Brasil e Sérvia, último antes da realização da Copa do Mundo. Há cinco anos, imaginava que neste momento estaria com meu ingresso na mão, para pelo menos uma das partidas da Copa do Mundo. Mesmo que o jogo não fosse o do Brasil. Entre minhas fantasias e a realidade o que consegui foi isso, um ingresso para ver um amistoso antes da Copa e de algum modo sentir um pouco do clima de futebol. O que não imaginava era ver um amistoso entre Brasil e Brasis. Vamos as explicações.
Espera-se de um estádio de futebol, em momentos como esse, algo de catártico. Uma semana antes da estreia, Brasil sobe as escadas, a camiseta amarela reluzindo nos cinzas do frio paulistano, estádio lotado, gente saindo pelo ladrão. O que ocorreu, no entanto, foi o contrário da empolgação, do samba marcando o ritmo na arquibancada, dos gritos incessantes das torcidas. Ocorreram aplausos. À semelhança de um show em que o artista sobe ao palco. Como num jogo de tênis. 
Certo momento, frustrado. Olhei pro lado. Um senhor, gordo, cabelos compridos. Calças e blusas muito bem alinhadas. Típico figurão. Revoltou-se com o foto de muitos estarem em pé na sua frente. E não satisfeito em tonitruar sua voz muda em gestos violentíssimos, pasmém, atirou um copo de plástico. Por sorte não acertou ninguém. 
O mesmo senhor gordo, grã-fino de nariz de defunto, começou a vaiar a seleção impaciente. Esperava um espetáculo e o que viu foi o futebol moderno. Força física, aplicação tática, marcação em primeiro lugar. Mas esperava outra coisa. Talvez umas bicicletas, acrobacias ou golaços. Como se mesmo no tempo de Pelé, o jogo fosse apenas um video tape de melhores lances. Acredito, nunca vira um jogo de verdade, em sua frente.
Depois, no intervalo, ouvia uma menina contar animadamente que ela estaria presente em vários jogos. Porque o pai dela trabalhava na Samsung, patrocinadora do Mundial, e ganhara muitas entradas. Contava assim naturalmente, sem perceber contradição alguma. Provavelmente, em suas contas das redes sociais, divulgue textos indignados contra a corrupção e contra a corrupção na Copa. Mas não percebe que aquelas entradas, para jogos que nem irá, e se for não saberá de fato quem está em campo, simbolizam a dificuldade de milhares de fanáticos em adquirir as suas entradas. Fala assim, como se não houvesse nada demais. E vaiava a seleção. Sem entender bem o porquê. Não percebendo que aquelas entradas são fruto da corrupta relação entre a FIFA e as Empresas que a patrocinam. 
Quando as "grã-finas de narinas de cadáver" (Nélson Rodrigues) se manifestavam, nas arquibancadas, com seus gritos e uivos, desejava ardentemente que não houvesse Copa. Não eram poucas. E não eram necessariamente mulheres. Explico: Nélson Rodrigues citava em suas crônicas, personagens que compareciam aos jogos festivos, em geral da Seleção, em época de Copa. Eram em geral mulheres, que nada entendiam de futebol e que costumavam fazer peguntas como: Quem é essa tal bola? Eram o símbolo da elite nacional carioca que frequentava o Maracanã para sair nas colunas sociais. Na sexta-feira, essas eram ao menos metade do Morumbi. E como disse, não necessariamente mulheres, mas principalmente grã-finos. 
Essas situações me fizeram não querer Copa. Pensar nas famílias desapropriadas em favelas, nas greves pelo país, nos sem-teto. Pensei nos operários que ganham pouco para construir arenas, nas quais nunca verão um jogo. Pensei nos trabalhadores, inocentes em barracos, creditando sua felicidade a um bando de jogadores mimados, europeizados, frescos, narizes de viúva. Comecei a sentir um desejo forte de explodir aquilo tudo. De ir pra rua, de gritar Fora Fifa, Fora todo mundo, que agora vai ser do nosso jeito.
No entanto, olhei pro lado e vi um pai. Um rapaz de não mais que 30 anos e um filho, de mais ou menos 4. O Fred acabara de fazer o gol da vitória, um belissimo gol, logo após ser vaiado. O garota pulava, chorava e se ria. Como se a Copa estivesse acabando e não em vésperas de começar. Como num gol do título. E abraçava seu pai, talvez num momento que será determinante em sua vida, em quem será, em como verá o mundo. Lembrei-me das vezes em que eu, apaixonado, fiz o mesmo com meu pai. Ou com algum desconhecido que era ou será um dia pai. E me acalmei. Como se o gol tirasse de mim toda a crítica necessária e me enchesse de felicidade e magia. Balançasse o capim no fundo da poesia da minha vida. 
O que esse jogo entre Brasil e Brasis me causou é de uma profunda contradição. Torço pela mesma seleção de brasileiros que nada tem a ver comigo e com os meus. Há momentos em que não quero torcer. Se o legado dessa Copa for assistir jogos sentados. Vaiar meu time do coração (como já vejo nos estádios, infelizmente) durante a partida. Se nosso modo de ser e de torcer for agora substituído pelo jeito empolado das grã-finas de nariz de defunto, sinto que o meu Brasil, já perdeu para aquele outro no qual não me vejo.
O mais triste é saber que o Brasil popular, das ruas e das arquibancadas de cimento, que vê os jogos em pé e que sabe o momento de xingar ou de empurrar o time, este Brasil não tem e nem nunca teve complexo de vira-lata. Nunca torceria contra por achar que Copa muda eleição. Esse Brasil, dito de ignorantes, não estará nos estádios, correndo o risco de ser, a partir de julho, excluído de vez deste espaço tão seu. O Brasil do nariz em pé, da elite branca, da intolerância, esse Brasil ocupará as cadeiras nos jogos. Cantará sorumbaticamente cantos de ninar. Aplaudira e vaiará, como num show. Será a representação de nossa torcida. Esse é o Brasil que estará nos jogos, mas não acredita em vitória. Eles são os vira-latas do tal complexo. Os que arrotam por aí: Só no Brasil isso, Só no Brasil aquilo.
Devemos ir pra rua mesmo. A seleção precisará de barulho. Os doutos juízes e senhores distintos não serão capazes de fazer isso. São muito educados para tal. 

terça-feira, 19 de novembro de 2013

O que Marx diria do Bom Senso F.C. - Parte 2

O controle do Tempo e o jogo

Francisco Rebolo - Futebol (1936)

Quero me dedicar agora a ilustrar o que Marx diria sobre os artifícios em torno do Tempo e o impacto que o controle do tempo tem na nossa percepção do jogo. Ainda no Capítulo 8, dedicado a Jornada de Trabalho, Marx mostra que os capitalistas tentam a qualquer custo criar artifícios para controlar o tempo de trabalho de seus funcionários. Esta percepção é importantíssima, porque ao controlar o tempo, o capitalista exercer o controle sobre a subjetividade do trabalhador. Para muitos filósofos, nos quais se inclui Marx, é o Trabalho um elemento essencial a construção da nossa humanidade. Passamos mais tempo trabalhando que fazendo qualquer outra atividade.
Quando alguém nos faz a pergunta sobre quem somos, normalmente respondemos dizendo o que fazemos enquanto profissionais. Nos confundimos entre o que é ser alguém e a atividade primeira que fazemos no mundo. Para Marx, ao trabalhar, o homem modifica as coisas exteriores e modifica a si próprio. Aqui surge o conceito de Alienação. Ao trabalhar, somos o nosso trabalho, mas se nosso trabalho é repetitivo e extenuante, não faz sentido internamente, entramos em crise, sofremos, procuramos outras coisas para fazer e etc. Há uma relação profunda entre trabalhar e ser alguém. Isso é inegável.
Um ponto dessa ideia que me salta aos olhos é o fato de que cada vez mais somos cobrados pela eficiência no nosso cotidiano. Eficiência é basicamente o quanto ajustamos nossa atividade dentro de um tempo, para extrair dela o máximo (melhores) de resultados possíveis. As consequências dessa cobrança na sociedade atual é que quando estamos fora dos locais de trabalho, nos sentimos perdidos. Não sabemos como usar o tempo e nos sentimos como vagabundos por não sermos naquele momento eficientes. Isso significa que tornamos parte da nossa existência inteira, a parte que deveria se relacionar somente com o mundo do trabalho. Em outras palavras, absorvemos a percepção do Tempo de trabalho (tempo fundamental ao lucro e a produção de Mais-Valor) como o guia de nosso tempo nas demais esferas de atividade.
O que isso tem que ver com o Futebol, me perguntaria entusiasmado um de nossos dois leitores. Ora, assim como nas demais atividades laborais, os jogadores são cobrados dessa mesma eficiência. São cobrados a dar o máximo de suas condições humanas no tempo em que exercem a sua atividade. São levados ao limite da competição. São forçados a explorar o máximo de sua força física e intelectual para conseguir a vitória ou um empate. São instigados a se superar.
O que acontece é que o futebol não é alheio ao mundo. O futebol é parte da sociedade e carrega de modo concentrado os elementos e valores de nosso tempo. A superação não é uma criação do capitalismo, superar-se é uma ideia antiga. Mas o capitalismo se apropria dela e não nos avisa. Projeta este valor modificado para todas as arenas da experiência humana. E o futebol é parte dessas múltiplas experiências. Minha hipótese é que ao cobrar maior eficiência, os investidores querem produzir Valor. Querem que o Tempo do Trabalho seja o máximo possível, seja nos treinos, nos jogos, nas peças publicitárias. Tudo que envolve o jogo deve ser operado de modo a produzir o Máximo de Valor Possível. A consequência é que, de fato, o jogo ficou mais intenso. Jogadores não param. Correm o tempo todo, disputam todas as bolas, dão mais carrinho, voam na nuca de adversários com suas testas, tornam os mais velhos, como Paulo Baier, aberrações.
Antigamente, isso faz parte de minha hipótese nesse texto, o jogo era mais calmo, porque o Capital ainda não atingira o patamar de cobrança subjetiva que tem hoje. Os jogos visavam o lucro, mas um lucro muito menor. Muito menos desenvolvido economicamente. Agora, em tempos de neoliberalismo e de crise econômica, a busca pelo lucro é mais intensa. Os jogadores são vítimas desse processo, ainda que não o saibam, e tornam natural tal cobrança, vendem essa ideia e se impõem condições super-humanas. Talvez por isso morram mais jogadores a cada ano. Talvez por isso a violência dos torcedores aumente. Todos queremos, consciente ou inconscientemente, mais eficiência. E isso exige mais tempo, mais trabalho e mais tensão entre o Capital e o Trabalho.
O que quero chamar a atenção com estes dois textos são duas coisas: o Bom Senso é fruto de um momento histórico em que o Capital se torna mais agressivo em todas as arenas e derrama sua agressividade nas praças esportivas; o Bom Senso é uma organização de classe, ainda que não se reconheça enquanto tal; as mudanças na percepção do jogo e do modo como é aproveitado o tempo nos 90 minutos é fruto do modo como o Tempo é importante estruturalmente para uma sociedade que visa como objetivo primeiro a Reprodução do Dinheiro e não do humano ou de outros valores, ainda que se diga o contrário.

Continuarei frequentando os estádios, apesar destas contradições. O que Marx diria disso, eu não sei, mas ele se pudesse teria escolhido o Manchester para torcer, porque entre economias e política, há de se gastar o meu tempo de ócio como bem entendo, sem eficiências e sem mais valor algum. 

O que Marx diria do Bom Senso F.C. - Parte 1

Capital e Trabalho: a política dos boleiros


O texto a seguir será um pouco denso, mas fácil de entender. Pretende mais dizer o que eu diria sobre o Bom Senso F.C., a partir de minhas leituras de Marx (o velho barba da Prússia, cada vez mais lido nos tempos de crise), do que propriamente o que Marx diria. Oxalá Marx pudesse dizer algo. Como não pode, me arrisco por seu texto e o trago pra atualidade futeboleira do Brasil, anil e amargo de nossos dias. A primeira parte deste texto se dedicará a argumentar sobre os dados objetivos econômicos e políticos do movimento. A segunda parte, sobre as questões subjetivas, mais precisamente sobre o modo como o político adentra ao campo de jogo e a nossa percepção dele.

Pois bem, para começo de conversa, o Bom Senso F.C. é um movimento de jogadores profissionais e será entendido nestas linhas como um movimento reivindicatório de um grupo de trabalhadores. Não me importarei se ganham mais ou menos que as demais categorias. Isso não importaria, nem a mim e nem a Marx. O que importaria em sua teoria é o fato de que como profissionais (ou trabalhadores, como queiram) eles vendem sua Força de Trabalho no mercado, para "investidores" (capitalistas) em troca de um salário. A Força de Trabalho, para Marx, é nada mais que o tempo que usam para exercerem sua atividade. Não importa se são apertadores de parafusos ou aparadores de bolas com o corpo. Importa que exercem com suas capacidades psíquicas e físicas certa atividade em troca de salário. Os jogadores vendem seu tempo e os "investidores" (os dirigentes, os clubes, as corporações e todos os atores envolvidos nesse processo) lucram com essa troca. Se lucram com essa troca, movimentam um dinheiro que estaria de outro modo parado, e ao movimentarem esse dinheiro, o transformam em Capital. Trata-se portanto de uma relação entre Trabalho de um lado e Capital do outro. 
No capítulo 8 do Capital, Marx escreve um longo capítulo dedicado a Jornada de Trabalho. Para Marx, a relação entre Trabalho e Capital é antagônica e insolúvel. Ao Capital interessa que o Trabalho seja exercido no máximo de horas possíveis, sem que necessariamente se pague por essas horas. Tal fato decorre de sua percepção sobre o modo como o Valor (não confundir com o preço) é constituído na sociedade. Marx percebe que o Valor é produzido pelo Tempo de Trabalho dispendido na produção de uma Mercadoria. E percebe matematicamente (é uma prova, minha gente) que o lucro não é gerado na troca da coisa Mercadoria, mas sim gerado na troca entre a Força de Trabalho e o Salário. É essencial ao Capital extrair o máximo de horas de trabalho, porque sem isso não há ganho, não há retorno do Dinheiro investido. 
Provamos isso quando percebemos que em momentos de crise, as propostas da sociedade quase sempre giram em torno de se ampliar ou flexibilizar as horas de trabalho, mantendo os salários. Mas se isso não for possível legalmente, o Capital encontra artifícios. Por exemplo, se eu sou pago para exercer uma atividade por 8 horas, recebo em meu contrato de trabalho as 8 horas. Essa é uma troca justa. Mas se meu patrão fizer essa troca, ele não AGREGA Valor e apenas empata o jogo do lucro. Para vencê-lo, ele precisa me pagar pelas 8 horas, mas me fazer produzir como se fossem 12 horas. Agregou com isso, 4 horas de trabalho e isso se transforma em Valor, que vira o preço e que o faz lucrar mais. De modo simplificado, é isso que Marx chama de Mais-Valor ou Mais-Valia.
Voltemos aos exemplos: eu trabalho 8 horas. Mas para trabalhar as 12 horas necessárias pro lucro, basta que ele (meu patrão) me mande e-mails e me ligue fora do horário de trabalho. Ele continua pagando 8 horas, mas aumentou minha carga de trabalho. Os profissionais da administração de empresas (não de humanos) gostam de encontrar artifícios como esses e em tempos de Internet é cada vez mais difícil separar o que é o ESPAÇO do trabalho, de outros ESPAÇOS da vida. Como professor, sei muito bem disso, quando corrijo um milhão de provas fora da sala de aula, que é o meu ESPAÇO de trabalho.
Pois bem, voltando ao Bom Senso F.C., os jogadores se reuniram na tentativa de diminuir o tempo trabalhado. Sentem-se exauridos fisicamente, percebem as desigualdades econômicas entre os atletas da Elite e os demais atletas, reivindicam portanto, menos horas trabalhadas e manutenção dos seus ganhos. O que recebem da outra parte? Recebem um Não! Só podem receber um não, porque Marx tinha razão, a relação entre eles é uma relação inconciliável entre Capital e Trabalho e aos “investidores” não interessa a diminuição da Mais-Valia.
Essa é a Antinomia desta relação. Não sei como ela acabará, mas se Marx pudesse lhes dar um conselho, diria, meus amigos, unam-se, os poderosos do futebol tremerão diante de sua união e serão obrigados a recuar. A vitória ou a derrota do movimento dependerá de ter claro que se trata sim de uma questão política e já antiga, ao contrário, do que alguns jogadores disseram, como o goleiro Rogério Ceni, que defendeu não se tratar de movimento político. Ora, Marx sabe que a Economia só abaixa a crista para a Política e é nessa esfera que devem resolver essa contradição.


A segunda parte deste texto tratará do que Marx diria sobre o modo como o TEMPO se relaciona com o jogo dentro das quatro linhas e sobre os artifícios dos donos do jogo para aumentarem os seus lucros. Estas coisas não parecem ter relação, mas estão profundamente relacionadas. 
Um dos protestos do grupo: jovempan.uol.com.br